FUTEBOL RAIZ
No momento em que mais circula dinheiro dentro e fora de campo, tem torcedor que não se encaixa. E nem quer.
Ligas competitivas, arenas modernas, marcas universais, craques midiáticos e clubes de uma dimensão que nem dá para calcular. A forte entrada no futebol de empresas, mídia e marketing (dinheiro, para resumir) criou um modelo comercial do esporte de algumas décadas para cá. É claro que tudo isso traz muitos benefícios e hoje é impossível imaginar algo diferente do que existe.
Só no Brasil, direitos de TV, publicidade e patrocínio, transação de atletas, bilheteria, estádio e programas de sócio-torcedor fizeram os clubes faturarem R$ 4,930 bilhões no ano de 2017, segundo o relatório Análise Econômico-Financeira dos Clubes de Futebol Brasileiros
Circula muito dinheiro, mas na realidade poucos podem tocar. É tipo um futebol “gourmet”, porque as camisas de futebol estão mais caras, os ingressos estão mais caros (em 2017, média de R$ 32 por jogo, 3,5% do salário mínimo brasileiro) e até ver jogo na TV está ficando caro com a proliferação dos serviços de streaming. Esse fenômeno distancia muitos amantes de futebol que haviam se aproximado justamente pela ligação com a essência do esporte, sua simplicidade. O sentimento de insatisfação com o tal futebol comercial está crescendo.
É justamente essa mercantilização do esporte que faz com que surja um movimento contrário e crescente: a onda retrô. “O futebol como negócio cresceu muito. E, na mesma medida, há uma tendência ao afastamento do futebol de raiz, da pelada, da rua, das praias, dos campos de várzea, praças públicas, subúrbios. Esse afastamento, quando fica mais agudo, cria uma tendência ao retorno às raízes para uma espécie de recuperação das identidades originais. As culturas coletivas muitas vezes vivem isso, e no caso do futebol é o que acontece”, explica o sociólogo Maurício Murad, da Universidade Salgado de Oliveira e ex-coordenador do Núcleo de Sociologia do Futebol da UERJ.
À medida que o sentimento de retomada das raízes ganha força entre o público consumidor, o mercado, é claro, acompanha. As empresas de material esportivo estão voltando a fabricar chuteiras pretas, o futebol de botão está conquistando as crianças, o futebol de várzea retomando espaço, os álbuns de figurinhas batendo recordes de venda e até a internet incentivando o culto ao que é antigo. O futebol raiz é um fenômeno porque tem gente que prefere não seguir a “moda atual”.
Futebol de botão é mais real.
Esse fenômeno de culto ao passado está cada vez mais presente no cotidiano, a ponto de influenciar a criação de estabelecimentos comerciais e mudar a rotina das pessoas. Desde março, por exemplo, um monte de gente está se reunindo em um bar na Zona Oeste de São Paulo para jogar botão. Lembra desse jogo? Com ajuda de uma palheta, os jogadores movem botões de plástico em uma mesa retangular de madeira até fazer gol. É um esporte criado no Brasil que foi muito tradicional antigamente – estourou nos anos 60 e 70, quando havia peças vendidas até em banca de jornal e produtos muito difundidos como o “Estrelão”, mesa fabricada pela Estrela, e os botões da Gulliver (além do Futebol Pelé).
O futebol de botão perdeu espaço. A popularização do futebol na TV e as tecnologias deixaram as mesas abandonadas. Enquanto os videogames cresceram, o futebol de mesa virou coisa de museu. Mas nem todo mundo abandonou completamente a tradição… “Eu descobri que os nichos ainda continuavam, mas muito fechados. Era um clube do bolinha, turmas que jogavam de velhos amigos de sempre, um grupo que nunca crescia e que um dia poderia acabar”, diz o designer Luciano Araújo.
É ele o dono de um bar chamado Arquibancada Botões Clássicos um lugar temático para reunir esses jogadores de botão do clube do bolinha e cativar mais gente para o esporte, inclusive crianças. Já houve dois torneios infantis de botão no bar, com 32 e 24 times comandados por crianças entre 7 e 12 anos. “Os pais falam que é legal, porque não imaginavam que jogariam futebol de botão com os filhos. E a molecada pira, é legal o envolvimento, os pais explicando. O futebol de verdade está ficando cada vez mais chato, e o futebol de botão é que traz um calor, diversão. É mais real do que o futebol das paredes de mármore”, aponta o agora empresário.
Toda Preta
A chuteira preta deve ser o maior símbolo deste conceito de futebol raiz. Nos primórdios do futebol ela era a única opção dos jogadores por conta da fabricação em couro. No Brasil, foi a partir dos anos 50 que saíram os primeiros modelos que não eram pretos ou marrom escuros. Casagrande, hoje comentarista da TV Globo, inovou ao jogar de chuteira branca pelo Corinthians, mas naquela época era considerado coisa de jogador mascarado. Então a indústria foi se aperfeiçoando, mas, pelo menos até a Copa do Mundo de 1994, a cor que dominava era mesmo o preto. Depois disso, ali em meados da década de 90, as empresas se especializaram nas chuteiras multicoloridas.
Na era dos craques midiáticos e do futebol comercial as cores ganharam força. Azul, amarelo, rosa, verde, laranja, vermelho, de oncinha, de zebra e até um pé de cada cor. Teve de tudo. E a chuteira preta, tradicional, raiz, perdeu espaço no pé dos jogadores e nas prateleiras de lojas. Quer dizer, tinha perdido. Em tempos de nostalgia, ela voltou a dar as caras, ainda que discretamente. Para 2019, são esperados pelo menos dois novos modelos e mais ações das empresas fabricantes de material esportivo para valorizar a essência do futebol.
“Hoje estamos presenciando uma volta aos anos 90 em todas as frentes, seja nos tênis, nas roupas e na volta de acessórios, como a pochete. No futebol não é diferente, uma parte do público quer usar algo próximo do que se usava naquela época, no caso, as chuteiras pretas. O modelo não necessariamente tem que viver para sempre. Entendemos como um ícone e a demanda aumenta ou diminui de acordo com as diretrizes da moda e o desejo do público. Acredito que esse fenômeno sempre existiu”, diz Fábio Kadow, diretor de marketing da Puma.
Trabalhamos com camisas antigas
Sabia que tem gente que vai em loja de futebol só para comprar camisa antiga? Temporada atual? Esquece! Mesmo em tempos de tecnologia avançada na indústria têxtil e no desenvolvimento de camisas de futebol ainda há espaço para essa onda nostálgica. “Tenho cliente nascido em 2000 que só compra camisa dos anos 90 ou coleção retrô. Os jogadores dessa época também estão muito em alta, tipo Ronaldo e Romário, então o pessoal procura. E se a camisa está personalizada, eles vêm mais sedentos ainda”, diz o empresário Renato Martins, proprietário da Atrox Casual Club uma loja de futebol em São Paulo.
Renato se especializou neste público raiz e diz que há procura: “A memória afetiva de quem vivenciou outras épocas influencia muito. As camisas eram mais bonitas, né? Hoje é tudo feito no mesmo template, só muda a cor. Antigamente havia design diferenciado, modelos, variedade. E uma coisa importante: camisas mais largas. Hoje é tudo fit. O pessoal mais gordinho fica p… da vida porque os modelos novos ficam agarrados. Aí mesmo quem não vivenciou essa época acaba comprando porque serve.
A loja repõe o estoque de camisas antigas com viagens anuais à Europa, onde há venda de itens de futebol em brechós, e até comprando coleção de pessoas que não têm mais interesse, precisam da grana ou mudaram o foco da coleção. A ideia é ter só produtos internacionais, originais e em bom estado de conservação. É bom que a camisa seja velha, mas deteriorada já é demais.
Reprodução: Esporte UOL