FUTEBOL DE BOTÃO DE TUCUMÃ
FUTEBOL DE BOTÃO DE TUCUMÃ
No final dos anos 1960, em Manaus, a criançada jogava o futebol de botão com o coco de uma palmeira chamada tucumã. Transcrevemos parte do texto do Anibal Beça, falecido em 2009, que foi poeta, tradutor, composito, teatrólogo e jornalista.
“O tucumã-arara era, mais ou menos, do tamanho de uma mexirica. Hoje, não passa do tamanho de um limão. Eles eram selecionados para serem atacantes. O tucumã-açu tinha o diâmetro de um pequeno ouriço de castanha. Eram selecionados para serem zagueiros (os famosos “beques”). O tucumã-piririca era pequeno, mas dava os melhores pontas e armadores.
O tucumã-purupuru era a escolha certa para a linha de médios, principalmente para o volante, vulgo “cabeça de área”. O tucumã-do-mato ou tucumã-babão era escolhido apenas pela sua beleza física – fornecia bons jogadores albinos.
A fabricação dos jogadores era feita em série. Normalmente, a molecada possuía alguém que fosse bom no manejo do terçado (espécie de facão). A gente entregava o caroço de tucumã e avisava: atacante! O sujeito posicionava o caroço em um cepo e dava uma terçadada acima da metade do coquinho. Ou então: linha média! O sujeito dava uma terçada abaixo da metade do coquinho. Ou ainda: beque! A terçadada era dada a um dedo da extremidade do coquinho.
Partíamos então pra fase de ralação. A escolha recaía nas ruas de asfalto mais recente, onde o atrito era maior. Para retificar a base dos jogadores era mais simples: bastava calçar uma sandália japonesa, pisar em cima do botão, e sair arrastando por uns duzentos metros.
Para raspar as fibras da superfície dos caroços, não tinha jeito: era na base da ralação manual, também no asfalto. Nessa fase, era comum alguém se entreter na tarefa e acabar ralando o dedo, que, dependendo da força aplicada nos caroços, podia expor o osso das juntas. Presenciei vários acidentes desse tipo.
Somente nessa fase é que a gente descobria as imperfeições do jogador, traduzida em buracos abertos por brocas e outros inimigos naturais. Dependendo do grau de imperfeição (até três buracos eram admitidos), a gente ia em frente – os buracos seriam corrigidos, posteriormente, com a adição de cera proveniente de velas derretidas. Caso contrário, eles seriam sumariamente descartados.
Após a ralação, começava a fase do polimento. No início, com lixa grossa. Depois, com lixa d’água. Finalmente, com lixa fina. Quando os jogadores estivessem perfeitamente lisos, eram pintados com tinta de sapateiro e ficavam alguns dias ao sol. Mais tarde, ficavam submersos n’água – para liberar a amêndoa e absorver umidade. Só então eram engraxados, com graça de sapateiro, e depois recebiam uma camada de carnaúba. Estavam prontos pros embates.
Com os beques, o buraco era mais embaixo. Depois que o miolo do coquinho era retirado, eles eram enterrados na terra. Em uma lata, derretíamos chumbo e depois derramávamos o chumbo quente no interior dos beques, jogando em seguida água fria para que o choque térmico solidificasse o chumbo. Algumas vezes, o beque não agüentava a parada e se quebrava. O jeito era começar tudo de novo.
Para fabricar os goleiros, havia uma espécie de molde escavado no barro, semelhante a uma caixa de fósforos. Era só derramar o chumbo derretido ali dentro e jogar água fria. Depois de retirar o molde de chumbo do buraco, era só retificá-lo para caber dentro de uma caixa de fósforos, e depois enfeitá-lo com as cores do clube.
As traves eram de madeira com redes de pano (normalmente voal transparente ou rendinha), tendo, nas suas dimensões, o dobro do goleiro de altura e cinco vezes o tamanho dele de largura.
A bola era feita de cortiça ou de lã. Os jogadores eram acionados por pentes (o pente Flamengo era o favorito, mas havia pentes artesanais feitos de osso que tiravam qualquer um do sério, em termos de potência, funcionalidade e direção).
Os times eram dispostos em campo quase sempre do mesmo jeito. Os dois beques chumbados embaixo da trave, ao lado do goleiro, um volante grandão na cabeça da área, dois médios se passando por laterais, e cinco atacantes. A regra adotada era a baiana (um toque). O resto, igual ao celotex.
Por exemplo, rebatida do goleiro pertence ao time que está atacando. Aí, um dos inventores de ocasião conseguiu introduzir vários alfinetes no peito do goleiro com o chumbo ainda derretido. O goleiro ficou parecido um porco-espinho, mas encaixava qualquer bola – e quanto mais forte o chute, melhor. Tivemos que proibir a presepada.”.
Reprodução parcial: Literatura na Arquibancada